"Bezerra de Menezes - Uma da mais impressionantes figuras do Ceará intelectual. Apesar de autodidata, pois não o ornava nenhum diploma acadêmico, soube projetar-se, em alto estilo, na vida cultura, cívica e política de sua terra."
Prof. Raimundo Fernandes em Antologia Cearense, p.27.
dicAS - Língua e Literatura nº 14
Ref.: Ipu no Topo do Mundo
Ref.: Ipu no Topo do Mundo
Por Airton Soares
CADA UM ESPICHA O ASSUNTO
------- de acordo com sua área de interesse.
ASSIM SENDO, VALI-ME DA MENSAGEM
------- do confrade Olívio Martins ( AFAI-29/03/2008- Ipu no Topo do Mundo ) para pesquisar sobre o famoso polígrafo cearense Antonio Bezerra de Menezes, o qual foi um dos fundadores, em 4 de março de 1887, juntamente com Juvenal Galeno, Barão de Studart, José Sombra, entre outros, do Instituto Histórico, Antropológico e Geográfico do Ceará.
ANTÔNIO BEZERRA DE MENEZES
------- Nascimento: 21.02.1841 - Falecimento: 28.08.1921
POR TER MORADO DÉCADAS
------- na área, o bairro “Antônio Bezerra”, em Fortaleza, (antes Barro Vermelho), leva o nome do escritor cearense.
NOTAS DE VIAGEM – TRECHO I
------- “É no dia 12 de setembro desse mesmo ano,(1884) uma sexta-feira, à meia-noite, que Antônio Bezerra de Menezes, o famoso polígrafo cearense, por ordem do governo provincial, a bordo do vapor Cabral, parte de Fortaleza em comissão ao interior, a fim de colher dados e informações – quer dizer, fazer um exame clínico – do Norte cearense.” (...)
NOTAS DE VIAGEM – TRECHO II
------- “No dia 1º de novembro (1884), Bezerra de Menezes, conclui o serviço, mas só na tarde do dia 4 põe-se a caminho do IPU, onde entra às 10 da noite. Dia 7, pela madrugada, deixa IPU.” (Citado por Cláudio Ferreira Lima – Ver referência 2)
O LIVRO NOTAS DE VIAGEM
------- Foi publicado pela Imprensa Universitária do Ceará no ano de 1965.
REFERÊNCIAS
1 - http://www.institutodoceara.org.br/
2 - http://www.dnocs.gov.br/~conviver/artigos.php?id=26
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1884 - ANO VENTUROSO
No dia 25 de março o Ceará, pioneiramente, liberta os escravos e, por isso, passa a ser a “Terra da Luz”.
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é diFÉrente.
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120 anos da viagem de Antônio Bezerra ao norte do Ceará
Cláudio Ferreira Lima
http://www.dnocs.gov.br/~conviver/artigos.php?id=26
O século XIX caracteriza a inserção mais ampla e profunda do Brasil na economia-mundo. É quando a mudança no estilo de vida dos países ricos aumenta e diversifica os negócios do país com o exterior, que passa a demandar, entre outros produtos, borracha, algodão, café, cacau e fumo.
Essa nova conjuntura internacional beneficia o Ceará, em especial por meio das exportações de algodão, café, cera de carnaúba e borracha da maniçoba. Daí por que esse século, e principalmente por causa da sua segunda metade, é considerado “o século de afirmação do Ceará” (1).
Em 1884, pontualmente, a então Província ainda se refaz da terrível seca de 1877-1879, que lhe deixa profundas seqüelas, tanto pelos que morrem quanto pelos que deixam o torrão natal em busca de escapar em outros lugares do país, em especial no Norte do Brasil.
Mas 1884 é também ano venturoso. No dia 25 de março o Ceará, pioneiramente, liberta os escravos e, por isso, passa a ser a “Terra da Luz”.
Enfim, nesse período, o Império vive o seu ocaso, amiudando-se os conflitos da Igreja e dos militares com o trono.
É no dia 12 de setembro desse mesmo ano, uma sexta-feira, à meia-noite, que Antônio Bezerra de Menezes, o famoso polígrafo* cearense, por ordem do governo provincial, a bordo do vapor Cabral, parte de Fortaleza em comissão ao interior, a fim de colher dados e informações – quer dizer, fazer um exame clínico – do Norte cearense.
O escopo da viagem
A chamada viagem científica se especializa e se torna rotina nos séculos XVIII e XIX (2). Portugal organiza, por intermédio de Domingos Vandelli, diretor do Museu d’Ajuda, professor da Universidade de Coimbra e membro da Academia Real de Ciências, diversas incursões planejadas de naturalistas às colônias. E isso se dá segundo uma política bem arquitetada que concilia a motivação científica com os ganhos econômicos.
Com a chegada da família real em 1808 ao Brasil, as viagens da espécie se intensificam de tal modo que essa fase fica conhecida como a do “novo descobrimento do Brasil”. O governo imperial dá a elas apoio financeiro, mas, para receber dele o patrocínio, têm de atender aos interesses da nação.
O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1818) – IHGB, a Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional (1827) – SAIN e o Museu Nacional (1838) oferecem o respaldo institucional a tais iniciativas.
Na tradição de viagem científica ao Ceará, a experiência do naturalista João da Silva Feijó, do grupo de Vandelli, é, sem dúvida, a mais bem sucedida. Depois de pisar em 1799 no território cearense, Feijó produz diversos trabalhos, merecendo realce entre eles a “Memória sobre a Capitania do Ceará”, que vem a lume em 1814. A famosa Comissão Científica de Exploração, que realiza de 1859 a 1861 investigações no Ceará, retoma os trabalhos de Feijó.
Em 1863, o senador Pompeu publica o “Ensaio estatístico da Província do Ceará” (3), que sistematiza e dá números ao conhecimento existente – e em boa margem fruto das viagens científicas -, já razoável, porém disperso, da realidade cearense. Só assim a administração pública passa a se equipar melhor para cumprir a sua missão.
Pois bem, no ano seguinte, Antônio Bezerra, já se beneficiando desse trabalho do senador Pompeu, percorre várias regiões ao Norte do Ceará (4) para ali colher dados e informações relativamente a diversos aspectos da Província, como ele mesmo resume:
· Natureza;
· Solo;
· Belezas naturais;
· Potencialidades econômicas;
· Lugares célebres por heroísmo na sustentação do Império ou por crimes dos primeiros povoadores;
· Flora e fauna: confronto interior X litoral;
· Formação geológica;
· Resquícios dos usos e costumes dos habitantes primitivos;
· Fósseis;
· Águas termais.
É dessa forma, com a ajuda de pessoas de erudição, como no presente caso, que, por esse tempo, os governos realizam estudos sobre o território que administram. Isso vai mudar no começo do século XX com a Inspectoria de Obras Contra as Secas – IOCS, que, por intermédio de renomados cientistas em múltiplos ramos do conhecimento, liderados por Arrojado Lisboa, passa a empreender estudos básicos sobre o território nordestino para o desenvolvimento da região.
A primeira etapa: trajeto a vapor de Fortaleza a Camocim
Na primeira etapa da viagem, ruma em direção a Camocim. Na aurora do dia 13, passa em frente à enseada do Pecém. Às 8:00, avista a ponta das Flecheiras, e duas horas depois, o vapor fundeia diante de Mundaú, retomando a rota somente às 14:00. A 40 milhas de Mundaú, caindo a noite, o Cabral larga âncora. À esquerda, a ponta do Tapagé, adiante a costa de Almofala. Pelas 9:00 do dia 14, demanda a barra do Acaraú e, depois, contorna a do Presídio. Demora-se em Acaraú, até meia-noite. Às 5:00 da manhã do dia 15, aparecem “os morros pequenos e escuros do Castelhano”, depois “grandes planícies de areia” e no centro “a sombra grandiosa da Serra da Meruoca, que esmaecia a longa distância". Somente as 11:00, “deixando à esquerda o rio Guriú, o morro das Cabaceiras, o das Moréias, por trás dos quais se erguem os serrotes de Tiaia, Aratanhin e Trapiá, descobrem-se como surgindo das ondas as casinhas brancas de Camocim”. Como faltava água na barra, o Cabral retrocede algumas milhas, descreve uma elipse e, por fim, fundeia no ancoradouro de Camocim, “o melhor da Província”. O dia, limpo: nenhuma nuvem no céu. Dois dias e meio para vencer menos de 200 milhas que separam Fortaleza de Camocim!
A segunda etapa: Litoral Oeste
Em Camocim, pega o trem às 7:00 do dia 26 para Granja, onde desembarca às 9:00. Era a segunda etapa da viagem, que cobria o Litoral Oeste, com ligeira incursão na Região de Sobral. Dia 3 de outubro vai para Massapê. Corta Angica (Martinópole), Riachão (Uruoca) e Pitombeiras (Senador Sá). De Massapê segue a cavalo às 16:00 até Santana do Acaraú, entrando na cidade às 19:00. Na manhã do dia 10, retorna a Massapé, pega, de novo, o trem, vai a Pitombeiras (Senador Sá), visita o Olho d’Água das Pedras, vê a casa de pedra e volta à noite a Massapê. No dia seguinte vai para Riachão (Uruoca), onde chega às 10:00. Aí, às 16:00, monta a cavalo e parte para Coreaú, a 42 km. Pernoita na fazenda Angicos. Pela manhã, está em Coreaú, de onde sai na madrugada do dia 18 em demanda de Viçosa.
A terceira etapa: Ibiapaba
Inicia a terceira etapa, a Ibiapaba, chegando dia 19 em Viçosa, e ali ficando até o dia 25. Às 6:00 desse mesmo dia, vai para Ibiapina, passando por Barrocão (Tianguá), onde chega pela manhã, demorando-se até as 17:00, quando parte. Às 20:00, apeia-se na casa de Anastácio Ferreira de Sousa, onde pernoita. Mal rompe a manhã do dia 26, segue o caminho e às 10:00 alcança o povoado de Furnalhão, onde pernoita. De lá, já na tarde do dia 27, dirige-se ao povoado de Araticum para conhecer a gruta do mesmo nome. Dorme em Araticum, e na manhã do dia 28, muito cedo, mete o pé no estribo, de modo que às 7:00 penetra na Gruta de Ubajara, saindo de lá ao meio-dia. Às 16:00 deixa Araticum, entrando à noite em S. Pedro de Ibiapina (Ibiapina), onde dorme e permanece até a madrugada do dia 31. Pela manhã entra em São Benedito, demora pouco, pois às 12:00 já segue para Guaraciaba do Norte, lá chegando sob o luar. No dia 1º de novembro conclui o serviço, mas só na tarde do dia 4 põe-se a caminho do Ipu, onde entra às 10 da noite. Dia 7, pela madrugada, deixa Ipu.
A quarta etapa: Inhamuns
Às 9:00 do dia 7, pisa em Ipueiras, de onde segue para Crateús às 17:00. Vem a quarta etapa da viagem: os Inhamuns. Às 14:00 do dia 9, entra em Crateús. No dia 13, à noite, vai em direção a Independência onde chega à boca da noite do dia 15, partindo às 17:00 do dia 17 para Tauá. No caminho, na noite do dia 19, arrancha-se em Parambu para estar em Tauá na manhã do dia seguinte. No dia 22, deixa Tauá e dorme à noite em Independência, pegando dia 24, ainda escuro, a rota de Tamboril. E, sempre a cavalo, entra em Tamboril às 10:00 do dia 25, ali ficando até o romper do dia 28, quando ruma para Santa Quitéria.
A quinta etapa: retorno a Fortaleza
Na quinta e última etapa da viagem, prepara o retorno a Fortaleza. A 29 pela manhã entra em Santa Quitéria, no Sertão Central, onde permanece até o dia 22 de dezembro, quando parte de madrugada para Sobral. Chega lá dia 24. No dia 5 de janeiro, às 17:30, segue para Litoral Oeste, visitando, primeiro, Itapagé (dos dias 7 a 13). Depois, no dia 14 pela manhã, segue para Itapipoca, onde pisa às 13:00. De madrugada, pelas 4 horas do dia 29, dá início a uma esticada até Acaraú, passando por Amontada (de meio-dia às 5 da tarde). Sob o crepúsculo do dia 31, põe os pés em Acaraú. Depois de 11 dias, no 11 de fevereiro, ainda escuro, prossegue o itinerário pelo litoral, passando por Almofala (pernoite) e Mundaú (dias 14 a 16), de onde, na manhã do dia 17, segue para Trairi. Ali chega nesse mesmo dia e permanece até às 5 da tarde do dia 23. À noite do dia 24 entra na Região Metropolitana de Fortaleza por São Gonçalo do Amarante, onde pernoita. Dia seguinte, passa por Caucaia, de onde parte às 16:00 para Fortaleza, entrando à boca da noite na Capital. Sem dúvida, uma longa caminhada: mais de 2000 km e 266 dias de viagem, percorrendo-se 21 dos 59 municípios de então.
O registro da viagem
A crônica dessa célebre viagem aparece, primeiro, em folhetins publicados pelo jornal “Constituição”, de Fortaleza, nos anos de 1884 e 1885. Só em 1889 é que toma a forma de livro, com o título “Província do Ceará – Notas de viagem (parte Norte)”. Em 1915, outra edição, outro título: “Notas de viagem ao Norte do Ceará”. Por fim, meio século depois, a terceira edição com o título encurtado: “Notas de viagem”. É nesta que nos baseamos para o presente artigo (5).
No seu relato, Antônio Bezerra procura introduzir o leitor – segundo ele, principalmente o jovem – em temas científicos, a base do progresso. No percurso a vapor de Fortaleza a Camocim, por exemplo, ele cria diálogo com suposto companheiro de viagem para, ao falar sobre a lua e o mar, revelar segredos de astronomia e de oceanografia.
Ao longo do texto, seja para sustentar as explicações seja para dar mais graça à narrativa, ele cita fartamente cientistas, viajantes – em especial, naturalistas -, poetas e escritores.
Com relação a cada cidade que visita, discorre sobre localização, clima, origem, criação, vista geral, ruas, praças, casas, igreja-matriz, câmara, cadeia, cemitério, mercado, produção, população, escola e renda (arrecadação de impostos). O grau de detalhamento dessas informações, como será fácil ver, varia com a maior ou menor permanência de Antônio Bezerra no lugar. Sigamos os pontos que ele mesmo arrola como objeto da viagem.
No caminho entre uma cidade e outra, observa atentamente a natureza. A de Viçosa o deixa extasiado. Acha-a esplendorosa. Em São Benedito, porém, constata que, infelizmente, a rica floresta já se ressente da depredação. E, depois de descrever a vegetação do território cearense, lembra a severidade das leis em outros países, e mesmo do Brasil, para proteger o meio ambiente, ressaltando inclusive algumas boas práticas no Ceará. Entretanto, para ele, não se dá a devida atenção à arboricultura, e o que se faz é pouco para se debelar o mal das secas.
As belezas naturais, Antônio Bezerra as contempla na praia das Barreiras, em Camocim, onde também se deleita com o manguezal cheio de aratus e guaiamuns na barra do Coreaú. Encanta-se com o monte do Céu (que hoje abriga a igreja do Céu), em Viçosa, da mesma forma que com as grutas do Araticum e, particularmente, de Ubajara e a bica do Ipu. Em Tauá, admira o serrote de Quinamuiú; em Itapagé, o Frade de Pedra: e em Trairi (com o desmembramento deste, hoje em Paraipaba) a lagoa das Almacegas.
Quanto à economia, Camocim, cidade portuária, ligada a Sobral desde 1882 pela via férrea, é para ele a localidade que mais progride na Província, e de tal forma que esvazia Granja, que, por sua vez, desperdiça o potencial do rio Coreaú, pois não há, nas margens dele, sequer uma vazante. Da janela do trem, quando passa em Angica (Martinópole), vê gado em todas as direções; mais adiante, porém, no Riachão (Uruoca), terra inaproveitada.
A riqueza mora na Ibiapaba. Em Viçosa, há fartura de cereais, cana de açúcar, fumo e café; há ainda mina de cobre, comércio sortido e riqueza vegetal sem aproveitamento, como o jaborandi, que não é explorado. Ibiapina (cereais, cana de açúcar, café e mandioca), São Benedito (cereais, cana de açúcar, café, mandioca e aguardente de cana) e Guaraciaba do Norte (cana de açúcar, café, mandioca e laranja: e mais: há por explorar salgema, caparrosa e xisto argiloso) são celeiros agrícolas. Ipu, além de cereais, cana de açúcar e o seu beneficiamento (rapadura e aguardente), planta algodão, cria gado e é possuidor, conforme Antônio Bezerra, de grande potencial econômico, com muitos minérios (há ocorrências de ouro, cobre e chumbo, entre outros). Potencial que é inferior apenas ao do Crato, mas depende da ligação ferroviária com Sobral para efetivá-lo.
Ainda sobre a Ibiapaba, Jácome Raja Gabaglia e Basílio Antônio de Siqueira Barbedo, ambos membros da famosa Comissão Científica, se impressionam tão positivamente com São Benedito que adquirem terras quando lá pisam em 1859.
Nos Inhamuns, a riqueza reside principalmente no gado, algodão e cereais. É assim nas 100 fazendas de Independência e nas 184 de Tauá. Em Tamboril, da mesma forma. E, nesses três municípios, é flagrante o estrago que trouxe a seca de 1877-1879. Em Tauá, o naturalista Feijó encontra mina de pedra-ume; há também mina de arsênico e xistos argilosos conhecidos como ardósia.
Em Santa Quitéria, a pecuária e produtos derivados mais o algodão, secundados pelos cereais e a mandioca, constituem as principais atividades econômicas. Em Sobral, é a pecuária em 350 fazendas que lidera a produção primária. Cereais, farinha e rapadura vêm da Meruoca. Há ainda pequenas unidades industriais, como fábricas de rede, de cigarro e sabão, e tipografias. O município desempenha o papel de grande centro comercial que abastece os municípios do Norte da Província e mesmo do Piauí e Maranhão.
Itapagé, assim como Itapipoca, vive o binômio boi-algodão. A serra de Uruburetama, segundo Antônio Bezerra, é pouca aproveitada, visto que nem fruteiras se plantam lá. Já no Acaraú, existe abundância de peixe, crustáceos e moluscos; cria-se gado, fabrica-se rede de tucum e, como cidade portuária, exportam-se cereais, algodão, cera de carnaúba, sal e camurupim, importando-se gêneros do Maranhão e Pernambuco. No Trairi, afora o peixe, que segue para o mercado da Capital, todos os anos saem do município mais de 5.000 fardos de algodão.
Antônio Bezerra penetra no mundo da delinqüência para relembrar crimes famosos que ocorreram em municípios por onde passa. O de Tabatinga, “essa tragédia de ódio e vingança”, em Viçosa, no ano de 1878, é o que lhe desperta maior indignação. Trata-se da chacina de quase toda a família e criados do Major Inácio José Correia, executada por Francisco Gonçalves da Costa, vulgo Juriti, ajudado por filhos, genros e outras pessoas. Foram dezenove os mortos.
O autor dedica muitas páginas à flora e à fauna. Aí faz digressões para esmiuçar os vários aspectos da carnaubeira e das plantas parasitas, carnívoras, aéreas, gigantes, venenosas e curiosas. Do mesmo modo, esquadrinha borboletas, aranhas e abelhas.
A formação geológica do território cearense está também no campo de suas preocupações. Assim, após análise detida, conclui que o solo da Ibiapaba não é de origem primitiva, dominado pelo granito, pórfiro e calcáreo, mas sim secundária, onde abundam fósseis. Em outra parte, disserta sobre o granito.
Quanto ao povo, capta algumas impressões. Por exemplo: vê terrível apatia no granjense; gênio selvagem no viçosense; instinto feroz no ibiapinense; frouxidão de costumes no tauaense; índole pacífica no quiteriense; bairrismo no sobralense; e hospitalidade do itapajaeense.
Antônio Bezerra, em suas pesquisas, encontra: urnas funerárias em Viçosa; fósseis em Guaraciaba do Norte; fêmur de mamífero extinto em Crateús; e ossadas fósseis de animais extintos em Tauá. No caminho de Santa Quitéria para Sobral, na localidade de Pajé, conhece uma fonte de águas termais, que é um dos objetos de exploração na sua viagem.
A cultura é pouca presente nos municípios visitados, daí a economia de registros a respeito. Chama-lhe, no entanto, a atenção, entre outras coisas: a leitura de jornais europeus em Santana do Acaraú; a récita em que se representa “A patente da criação”, de Joaquim Manuel de Macedo, a que ele assiste em Guaraciaba do Norte; os gabinetes de leitura em Guaraciaba do Norte e Sobral, onde constata o gosto pela música. Deplora, no entanto, a falta de jornais locais em quase todos os municípios.
Por onde passa, ouve muitas estórias e, sobretudo, lendas. Uma destas, a do “cão pelado”, que aparece, em certa estação do ano, ladrando e correndo na linha da serra; seria a alma de um morador ambicioso que tomou a terra de um vizinho pobre e quando de sua morte, por castigo, se transformara nesse animal.
O autor depara-se, nas andanças, com tipos interessantes como Antônio Laurindo da Silva, de Granja, um exímio artesão bem versado na literatura de viagens. Outro, Lourenço Correia de Souza Lima, de Almofala, mostra-lhe diversos trabalhos: chapéus de todos os feitios, flores artificiais das mais perfeitas, instrumentos musicais, como um clarinete, estátuas, desenhos gravados em madeira, produtos de fotografia, e assim por diante.
Antônio Bezerra vê e admira as iniciativas do Padre Ibiapina em Santana do Acaraú, do qual foi grande liderança e realizador: a Casa de Caridade e o cemitério, por exemplo, dois dos mais importantes equipamentos públicos, foram ambos empreendimentos dele construídos em tempo recorde, graças ao trabalho coletivo do povo da cidade.
Alguns achados no meio do caminho: em Camocim, uma peça de calibre 18 do forte de Jericoacoara; em Viçosa; uma cadeira de recosto à Luís XIII, que pertenceu aos jesuítas; e em Ibiapina: um tembetá – adorno de pedra que pendia dos lábios dos índios.
Desperta-lhe a curiosidade o uso bem disseminado do cachimbo em Granja assim como o dos tamancos em Viçosa. Já em Tamboril o fenômeno refere-se clima considerado bom para a saúde (é o lugar onde vê pessoas de maior idade “ostentando nos hábitos robustez admirável”; refere-se ainda aos dias mais curtos, “talvez pelo sol que, tendo de vencer a altura da serra das Matas, só depois de seis e meia derrama seus raios na vila, e às cinco e meia mais ou menos fá-los desaparecer por detrás da cordilheira da Ibiapaba”. Em Itapagé, tem notícia da vida em estado selvagem de duas pessoas: Francisca, que mora ao pé da grande pedra do Paraíso, e Severino, nas brenhas da serrota Quixaba. E em Itapipoca, na fazenda Taboca vê uma pedra com o rastro marcado de um pé de homem junto com o de um menino.
Antônio Bezerra é defensor da açudagem, e assim quer ver construídos os reservatórios que o governo já mandara estudar: Quixadá (Cedro), Lavras e Itacomoli (Paula Pessoa, em Granja), o primeiro, por sinal, iniciado em 1884. Do mesmo modo, deseja uma agricultura moderna, com práticas avançadas (mecanizadas) de cultivo e amanho da terra. É crucial ainda para ele a propagação das ciências naturais. E acredita no desenvolvimento do Ceará, se não pelas riquezas minerais, pela indústria. Acha que, “quando a política deixar de ser um fanatismo que transvia até as classes mais ‘iluminadas’ da nação”, que só cuidam dos seus interesses particulares.
Não perdoa o traçado da Estrada de Ferro Camocim-Sobral, concluída em 1882, porque passa por vazios econômicos e por isso é uma mentira escrita em 131 quilômetros de trilhos de ferro que o futuro provará. E, de fato, o último trem parte de Camocim para Sobral em 24 de agosto de 1977.
Antônio Bezerra quer uma sociedade mais aberta, prega a emancipação da mulher e parece acreditar na organização da sociedade, como demonstra ao perorar contra o abandono do povo pelos governos: “Abençoado desprezo este que dá motivo para nos alevantarmos contanto somente com o próprio esforço!”
Bibliografia:
(1) Expressão cunhada pelo historiador José Aurélio Câmara. Ver CORDEIRO, Celeste. O Ceará na segunda metade do século XIX. SOUSA, Simone de (Org.). Uma nova história do Ceará. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2000. p. 135
(2) PINHEIRO, R.; LOPES, Maria Margaret; Aspectos das produções textuais nas viagens científicas. 08/2003, Revista Triplov, Vol. s/n, pp.1-1, Portugal, PORTUGAL, 2003
(3) BRASIL, T. P. de Sousa. Ensaio Estatístico da Província do Ceará. Tomo I. Fortaleza: Fundação Waldemar Alcântara, 1997. O senador Pompeu já havia publicado antes: Memória sobre a estatística e indústria da Província do Ceará. Fortaleza: Tip. Brasileira, 1857; Memória estatística da Província do Ceará sob a sua relação física, política e industrial. Fortaleza: Tip. Brasileira, 1858.
(4) Adotamos neste trabalho as atuais macrorregiões do Estado do Ceará.
(5) BEZERRA, Antônio. Notas de viagem. Fortaleza: Imprensa Universitária do Ceará, 1965.
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Cláudio Ferreira Lima – Economista, ex-secretário de Planejamento do Ceará e atualmente coordenador-geral de Planejamento do DNOCS.
Cláudio Ferreira Lima
http://www.dnocs.gov.br/~conviver/artigos.php?id=26
O século XIX caracteriza a inserção mais ampla e profunda do Brasil na economia-mundo. É quando a mudança no estilo de vida dos países ricos aumenta e diversifica os negócios do país com o exterior, que passa a demandar, entre outros produtos, borracha, algodão, café, cacau e fumo.
Essa nova conjuntura internacional beneficia o Ceará, em especial por meio das exportações de algodão, café, cera de carnaúba e borracha da maniçoba. Daí por que esse século, e principalmente por causa da sua segunda metade, é considerado “o século de afirmação do Ceará” (1).
Em 1884, pontualmente, a então Província ainda se refaz da terrível seca de 1877-1879, que lhe deixa profundas seqüelas, tanto pelos que morrem quanto pelos que deixam o torrão natal em busca de escapar em outros lugares do país, em especial no Norte do Brasil.
Mas 1884 é também ano venturoso. No dia 25 de março o Ceará, pioneiramente, liberta os escravos e, por isso, passa a ser a “Terra da Luz”.
Enfim, nesse período, o Império vive o seu ocaso, amiudando-se os conflitos da Igreja e dos militares com o trono.
É no dia 12 de setembro desse mesmo ano, uma sexta-feira, à meia-noite, que Antônio Bezerra de Menezes, o famoso polígrafo* cearense, por ordem do governo provincial, a bordo do vapor Cabral, parte de Fortaleza em comissão ao interior, a fim de colher dados e informações – quer dizer, fazer um exame clínico – do Norte cearense.
O escopo da viagem
A chamada viagem científica se especializa e se torna rotina nos séculos XVIII e XIX (2). Portugal organiza, por intermédio de Domingos Vandelli, diretor do Museu d’Ajuda, professor da Universidade de Coimbra e membro da Academia Real de Ciências, diversas incursões planejadas de naturalistas às colônias. E isso se dá segundo uma política bem arquitetada que concilia a motivação científica com os ganhos econômicos.
Com a chegada da família real em 1808 ao Brasil, as viagens da espécie se intensificam de tal modo que essa fase fica conhecida como a do “novo descobrimento do Brasil”. O governo imperial dá a elas apoio financeiro, mas, para receber dele o patrocínio, têm de atender aos interesses da nação.
O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1818) – IHGB, a Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional (1827) – SAIN e o Museu Nacional (1838) oferecem o respaldo institucional a tais iniciativas.
Na tradição de viagem científica ao Ceará, a experiência do naturalista João da Silva Feijó, do grupo de Vandelli, é, sem dúvida, a mais bem sucedida. Depois de pisar em 1799 no território cearense, Feijó produz diversos trabalhos, merecendo realce entre eles a “Memória sobre a Capitania do Ceará”, que vem a lume em 1814. A famosa Comissão Científica de Exploração, que realiza de 1859 a 1861 investigações no Ceará, retoma os trabalhos de Feijó.
Em 1863, o senador Pompeu publica o “Ensaio estatístico da Província do Ceará” (3), que sistematiza e dá números ao conhecimento existente – e em boa margem fruto das viagens científicas -, já razoável, porém disperso, da realidade cearense. Só assim a administração pública passa a se equipar melhor para cumprir a sua missão.
Pois bem, no ano seguinte, Antônio Bezerra, já se beneficiando desse trabalho do senador Pompeu, percorre várias regiões ao Norte do Ceará (4) para ali colher dados e informações relativamente a diversos aspectos da Província, como ele mesmo resume:
· Natureza;
· Solo;
· Belezas naturais;
· Potencialidades econômicas;
· Lugares célebres por heroísmo na sustentação do Império ou por crimes dos primeiros povoadores;
· Flora e fauna: confronto interior X litoral;
· Formação geológica;
· Resquícios dos usos e costumes dos habitantes primitivos;
· Fósseis;
· Águas termais.
É dessa forma, com a ajuda de pessoas de erudição, como no presente caso, que, por esse tempo, os governos realizam estudos sobre o território que administram. Isso vai mudar no começo do século XX com a Inspectoria de Obras Contra as Secas – IOCS, que, por intermédio de renomados cientistas em múltiplos ramos do conhecimento, liderados por Arrojado Lisboa, passa a empreender estudos básicos sobre o território nordestino para o desenvolvimento da região.
A primeira etapa: trajeto a vapor de Fortaleza a Camocim
Na primeira etapa da viagem, ruma em direção a Camocim. Na aurora do dia 13, passa em frente à enseada do Pecém. Às 8:00, avista a ponta das Flecheiras, e duas horas depois, o vapor fundeia diante de Mundaú, retomando a rota somente às 14:00. A 40 milhas de Mundaú, caindo a noite, o Cabral larga âncora. À esquerda, a ponta do Tapagé, adiante a costa de Almofala. Pelas 9:00 do dia 14, demanda a barra do Acaraú e, depois, contorna a do Presídio. Demora-se em Acaraú, até meia-noite. Às 5:00 da manhã do dia 15, aparecem “os morros pequenos e escuros do Castelhano”, depois “grandes planícies de areia” e no centro “a sombra grandiosa da Serra da Meruoca, que esmaecia a longa distância". Somente as 11:00, “deixando à esquerda o rio Guriú, o morro das Cabaceiras, o das Moréias, por trás dos quais se erguem os serrotes de Tiaia, Aratanhin e Trapiá, descobrem-se como surgindo das ondas as casinhas brancas de Camocim”. Como faltava água na barra, o Cabral retrocede algumas milhas, descreve uma elipse e, por fim, fundeia no ancoradouro de Camocim, “o melhor da Província”. O dia, limpo: nenhuma nuvem no céu. Dois dias e meio para vencer menos de 200 milhas que separam Fortaleza de Camocim!
A segunda etapa: Litoral Oeste
Em Camocim, pega o trem às 7:00 do dia 26 para Granja, onde desembarca às 9:00. Era a segunda etapa da viagem, que cobria o Litoral Oeste, com ligeira incursão na Região de Sobral. Dia 3 de outubro vai para Massapê. Corta Angica (Martinópole), Riachão (Uruoca) e Pitombeiras (Senador Sá). De Massapê segue a cavalo às 16:00 até Santana do Acaraú, entrando na cidade às 19:00. Na manhã do dia 10, retorna a Massapé, pega, de novo, o trem, vai a Pitombeiras (Senador Sá), visita o Olho d’Água das Pedras, vê a casa de pedra e volta à noite a Massapê. No dia seguinte vai para Riachão (Uruoca), onde chega às 10:00. Aí, às 16:00, monta a cavalo e parte para Coreaú, a 42 km. Pernoita na fazenda Angicos. Pela manhã, está em Coreaú, de onde sai na madrugada do dia 18 em demanda de Viçosa.
A terceira etapa: Ibiapaba
Inicia a terceira etapa, a Ibiapaba, chegando dia 19 em Viçosa, e ali ficando até o dia 25. Às 6:00 desse mesmo dia, vai para Ibiapina, passando por Barrocão (Tianguá), onde chega pela manhã, demorando-se até as 17:00, quando parte. Às 20:00, apeia-se na casa de Anastácio Ferreira de Sousa, onde pernoita. Mal rompe a manhã do dia 26, segue o caminho e às 10:00 alcança o povoado de Furnalhão, onde pernoita. De lá, já na tarde do dia 27, dirige-se ao povoado de Araticum para conhecer a gruta do mesmo nome. Dorme em Araticum, e na manhã do dia 28, muito cedo, mete o pé no estribo, de modo que às 7:00 penetra na Gruta de Ubajara, saindo de lá ao meio-dia. Às 16:00 deixa Araticum, entrando à noite em S. Pedro de Ibiapina (Ibiapina), onde dorme e permanece até a madrugada do dia 31. Pela manhã entra em São Benedito, demora pouco, pois às 12:00 já segue para Guaraciaba do Norte, lá chegando sob o luar. No dia 1º de novembro conclui o serviço, mas só na tarde do dia 4 põe-se a caminho do Ipu, onde entra às 10 da noite. Dia 7, pela madrugada, deixa Ipu.
A quarta etapa: Inhamuns
Às 9:00 do dia 7, pisa em Ipueiras, de onde segue para Crateús às 17:00. Vem a quarta etapa da viagem: os Inhamuns. Às 14:00 do dia 9, entra em Crateús. No dia 13, à noite, vai em direção a Independência onde chega à boca da noite do dia 15, partindo às 17:00 do dia 17 para Tauá. No caminho, na noite do dia 19, arrancha-se em Parambu para estar em Tauá na manhã do dia seguinte. No dia 22, deixa Tauá e dorme à noite em Independência, pegando dia 24, ainda escuro, a rota de Tamboril. E, sempre a cavalo, entra em Tamboril às 10:00 do dia 25, ali ficando até o romper do dia 28, quando ruma para Santa Quitéria.
A quinta etapa: retorno a Fortaleza
Na quinta e última etapa da viagem, prepara o retorno a Fortaleza. A 29 pela manhã entra em Santa Quitéria, no Sertão Central, onde permanece até o dia 22 de dezembro, quando parte de madrugada para Sobral. Chega lá dia 24. No dia 5 de janeiro, às 17:30, segue para Litoral Oeste, visitando, primeiro, Itapagé (dos dias 7 a 13). Depois, no dia 14 pela manhã, segue para Itapipoca, onde pisa às 13:00. De madrugada, pelas 4 horas do dia 29, dá início a uma esticada até Acaraú, passando por Amontada (de meio-dia às 5 da tarde). Sob o crepúsculo do dia 31, põe os pés em Acaraú. Depois de 11 dias, no 11 de fevereiro, ainda escuro, prossegue o itinerário pelo litoral, passando por Almofala (pernoite) e Mundaú (dias 14 a 16), de onde, na manhã do dia 17, segue para Trairi. Ali chega nesse mesmo dia e permanece até às 5 da tarde do dia 23. À noite do dia 24 entra na Região Metropolitana de Fortaleza por São Gonçalo do Amarante, onde pernoita. Dia seguinte, passa por Caucaia, de onde parte às 16:00 para Fortaleza, entrando à boca da noite na Capital. Sem dúvida, uma longa caminhada: mais de 2000 km e 266 dias de viagem, percorrendo-se 21 dos 59 municípios de então.
O registro da viagem
A crônica dessa célebre viagem aparece, primeiro, em folhetins publicados pelo jornal “Constituição”, de Fortaleza, nos anos de 1884 e 1885. Só em 1889 é que toma a forma de livro, com o título “Província do Ceará – Notas de viagem (parte Norte)”. Em 1915, outra edição, outro título: “Notas de viagem ao Norte do Ceará”. Por fim, meio século depois, a terceira edição com o título encurtado: “Notas de viagem”. É nesta que nos baseamos para o presente artigo (5).
No seu relato, Antônio Bezerra procura introduzir o leitor – segundo ele, principalmente o jovem – em temas científicos, a base do progresso. No percurso a vapor de Fortaleza a Camocim, por exemplo, ele cria diálogo com suposto companheiro de viagem para, ao falar sobre a lua e o mar, revelar segredos de astronomia e de oceanografia.
Ao longo do texto, seja para sustentar as explicações seja para dar mais graça à narrativa, ele cita fartamente cientistas, viajantes – em especial, naturalistas -, poetas e escritores.
Com relação a cada cidade que visita, discorre sobre localização, clima, origem, criação, vista geral, ruas, praças, casas, igreja-matriz, câmara, cadeia, cemitério, mercado, produção, população, escola e renda (arrecadação de impostos). O grau de detalhamento dessas informações, como será fácil ver, varia com a maior ou menor permanência de Antônio Bezerra no lugar. Sigamos os pontos que ele mesmo arrola como objeto da viagem.
No caminho entre uma cidade e outra, observa atentamente a natureza. A de Viçosa o deixa extasiado. Acha-a esplendorosa. Em São Benedito, porém, constata que, infelizmente, a rica floresta já se ressente da depredação. E, depois de descrever a vegetação do território cearense, lembra a severidade das leis em outros países, e mesmo do Brasil, para proteger o meio ambiente, ressaltando inclusive algumas boas práticas no Ceará. Entretanto, para ele, não se dá a devida atenção à arboricultura, e o que se faz é pouco para se debelar o mal das secas.
As belezas naturais, Antônio Bezerra as contempla na praia das Barreiras, em Camocim, onde também se deleita com o manguezal cheio de aratus e guaiamuns na barra do Coreaú. Encanta-se com o monte do Céu (que hoje abriga a igreja do Céu), em Viçosa, da mesma forma que com as grutas do Araticum e, particularmente, de Ubajara e a bica do Ipu. Em Tauá, admira o serrote de Quinamuiú; em Itapagé, o Frade de Pedra: e em Trairi (com o desmembramento deste, hoje em Paraipaba) a lagoa das Almacegas.
Quanto à economia, Camocim, cidade portuária, ligada a Sobral desde 1882 pela via férrea, é para ele a localidade que mais progride na Província, e de tal forma que esvazia Granja, que, por sua vez, desperdiça o potencial do rio Coreaú, pois não há, nas margens dele, sequer uma vazante. Da janela do trem, quando passa em Angica (Martinópole), vê gado em todas as direções; mais adiante, porém, no Riachão (Uruoca), terra inaproveitada.
A riqueza mora na Ibiapaba. Em Viçosa, há fartura de cereais, cana de açúcar, fumo e café; há ainda mina de cobre, comércio sortido e riqueza vegetal sem aproveitamento, como o jaborandi, que não é explorado. Ibiapina (cereais, cana de açúcar, café e mandioca), São Benedito (cereais, cana de açúcar, café, mandioca e aguardente de cana) e Guaraciaba do Norte (cana de açúcar, café, mandioca e laranja: e mais: há por explorar salgema, caparrosa e xisto argiloso) são celeiros agrícolas. Ipu, além de cereais, cana de açúcar e o seu beneficiamento (rapadura e aguardente), planta algodão, cria gado e é possuidor, conforme Antônio Bezerra, de grande potencial econômico, com muitos minérios (há ocorrências de ouro, cobre e chumbo, entre outros). Potencial que é inferior apenas ao do Crato, mas depende da ligação ferroviária com Sobral para efetivá-lo.
Ainda sobre a Ibiapaba, Jácome Raja Gabaglia e Basílio Antônio de Siqueira Barbedo, ambos membros da famosa Comissão Científica, se impressionam tão positivamente com São Benedito que adquirem terras quando lá pisam em 1859.
Nos Inhamuns, a riqueza reside principalmente no gado, algodão e cereais. É assim nas 100 fazendas de Independência e nas 184 de Tauá. Em Tamboril, da mesma forma. E, nesses três municípios, é flagrante o estrago que trouxe a seca de 1877-1879. Em Tauá, o naturalista Feijó encontra mina de pedra-ume; há também mina de arsênico e xistos argilosos conhecidos como ardósia.
Em Santa Quitéria, a pecuária e produtos derivados mais o algodão, secundados pelos cereais e a mandioca, constituem as principais atividades econômicas. Em Sobral, é a pecuária em 350 fazendas que lidera a produção primária. Cereais, farinha e rapadura vêm da Meruoca. Há ainda pequenas unidades industriais, como fábricas de rede, de cigarro e sabão, e tipografias. O município desempenha o papel de grande centro comercial que abastece os municípios do Norte da Província e mesmo do Piauí e Maranhão.
Itapagé, assim como Itapipoca, vive o binômio boi-algodão. A serra de Uruburetama, segundo Antônio Bezerra, é pouca aproveitada, visto que nem fruteiras se plantam lá. Já no Acaraú, existe abundância de peixe, crustáceos e moluscos; cria-se gado, fabrica-se rede de tucum e, como cidade portuária, exportam-se cereais, algodão, cera de carnaúba, sal e camurupim, importando-se gêneros do Maranhão e Pernambuco. No Trairi, afora o peixe, que segue para o mercado da Capital, todos os anos saem do município mais de 5.000 fardos de algodão.
Antônio Bezerra penetra no mundo da delinqüência para relembrar crimes famosos que ocorreram em municípios por onde passa. O de Tabatinga, “essa tragédia de ódio e vingança”, em Viçosa, no ano de 1878, é o que lhe desperta maior indignação. Trata-se da chacina de quase toda a família e criados do Major Inácio José Correia, executada por Francisco Gonçalves da Costa, vulgo Juriti, ajudado por filhos, genros e outras pessoas. Foram dezenove os mortos.
O autor dedica muitas páginas à flora e à fauna. Aí faz digressões para esmiuçar os vários aspectos da carnaubeira e das plantas parasitas, carnívoras, aéreas, gigantes, venenosas e curiosas. Do mesmo modo, esquadrinha borboletas, aranhas e abelhas.
A formação geológica do território cearense está também no campo de suas preocupações. Assim, após análise detida, conclui que o solo da Ibiapaba não é de origem primitiva, dominado pelo granito, pórfiro e calcáreo, mas sim secundária, onde abundam fósseis. Em outra parte, disserta sobre o granito.
Quanto ao povo, capta algumas impressões. Por exemplo: vê terrível apatia no granjense; gênio selvagem no viçosense; instinto feroz no ibiapinense; frouxidão de costumes no tauaense; índole pacífica no quiteriense; bairrismo no sobralense; e hospitalidade do itapajaeense.
Antônio Bezerra, em suas pesquisas, encontra: urnas funerárias em Viçosa; fósseis em Guaraciaba do Norte; fêmur de mamífero extinto em Crateús; e ossadas fósseis de animais extintos em Tauá. No caminho de Santa Quitéria para Sobral, na localidade de Pajé, conhece uma fonte de águas termais, que é um dos objetos de exploração na sua viagem.
A cultura é pouca presente nos municípios visitados, daí a economia de registros a respeito. Chama-lhe, no entanto, a atenção, entre outras coisas: a leitura de jornais europeus em Santana do Acaraú; a récita em que se representa “A patente da criação”, de Joaquim Manuel de Macedo, a que ele assiste em Guaraciaba do Norte; os gabinetes de leitura em Guaraciaba do Norte e Sobral, onde constata o gosto pela música. Deplora, no entanto, a falta de jornais locais em quase todos os municípios.
Por onde passa, ouve muitas estórias e, sobretudo, lendas. Uma destas, a do “cão pelado”, que aparece, em certa estação do ano, ladrando e correndo na linha da serra; seria a alma de um morador ambicioso que tomou a terra de um vizinho pobre e quando de sua morte, por castigo, se transformara nesse animal.
O autor depara-se, nas andanças, com tipos interessantes como Antônio Laurindo da Silva, de Granja, um exímio artesão bem versado na literatura de viagens. Outro, Lourenço Correia de Souza Lima, de Almofala, mostra-lhe diversos trabalhos: chapéus de todos os feitios, flores artificiais das mais perfeitas, instrumentos musicais, como um clarinete, estátuas, desenhos gravados em madeira, produtos de fotografia, e assim por diante.
Antônio Bezerra vê e admira as iniciativas do Padre Ibiapina em Santana do Acaraú, do qual foi grande liderança e realizador: a Casa de Caridade e o cemitério, por exemplo, dois dos mais importantes equipamentos públicos, foram ambos empreendimentos dele construídos em tempo recorde, graças ao trabalho coletivo do povo da cidade.
Alguns achados no meio do caminho: em Camocim, uma peça de calibre 18 do forte de Jericoacoara; em Viçosa; uma cadeira de recosto à Luís XIII, que pertenceu aos jesuítas; e em Ibiapina: um tembetá – adorno de pedra que pendia dos lábios dos índios.
Desperta-lhe a curiosidade o uso bem disseminado do cachimbo em Granja assim como o dos tamancos em Viçosa. Já em Tamboril o fenômeno refere-se clima considerado bom para a saúde (é o lugar onde vê pessoas de maior idade “ostentando nos hábitos robustez admirável”; refere-se ainda aos dias mais curtos, “talvez pelo sol que, tendo de vencer a altura da serra das Matas, só depois de seis e meia derrama seus raios na vila, e às cinco e meia mais ou menos fá-los desaparecer por detrás da cordilheira da Ibiapaba”. Em Itapagé, tem notícia da vida em estado selvagem de duas pessoas: Francisca, que mora ao pé da grande pedra do Paraíso, e Severino, nas brenhas da serrota Quixaba. E em Itapipoca, na fazenda Taboca vê uma pedra com o rastro marcado de um pé de homem junto com o de um menino.
Antônio Bezerra é defensor da açudagem, e assim quer ver construídos os reservatórios que o governo já mandara estudar: Quixadá (Cedro), Lavras e Itacomoli (Paula Pessoa, em Granja), o primeiro, por sinal, iniciado em 1884. Do mesmo modo, deseja uma agricultura moderna, com práticas avançadas (mecanizadas) de cultivo e amanho da terra. É crucial ainda para ele a propagação das ciências naturais. E acredita no desenvolvimento do Ceará, se não pelas riquezas minerais, pela indústria. Acha que, “quando a política deixar de ser um fanatismo que transvia até as classes mais ‘iluminadas’ da nação”, que só cuidam dos seus interesses particulares.
Não perdoa o traçado da Estrada de Ferro Camocim-Sobral, concluída em 1882, porque passa por vazios econômicos e por isso é uma mentira escrita em 131 quilômetros de trilhos de ferro que o futuro provará. E, de fato, o último trem parte de Camocim para Sobral em 24 de agosto de 1977.
Antônio Bezerra quer uma sociedade mais aberta, prega a emancipação da mulher e parece acreditar na organização da sociedade, como demonstra ao perorar contra o abandono do povo pelos governos: “Abençoado desprezo este que dá motivo para nos alevantarmos contanto somente com o próprio esforço!”
Bibliografia:
(1) Expressão cunhada pelo historiador José Aurélio Câmara. Ver CORDEIRO, Celeste. O Ceará na segunda metade do século XIX. SOUSA, Simone de (Org.). Uma nova história do Ceará. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2000. p. 135
(2) PINHEIRO, R.; LOPES, Maria Margaret; Aspectos das produções textuais nas viagens científicas. 08/2003, Revista Triplov, Vol. s/n, pp.1-1, Portugal, PORTUGAL, 2003
(3) BRASIL, T. P. de Sousa. Ensaio Estatístico da Província do Ceará. Tomo I. Fortaleza: Fundação Waldemar Alcântara, 1997. O senador Pompeu já havia publicado antes: Memória sobre a estatística e indústria da Província do Ceará. Fortaleza: Tip. Brasileira, 1857; Memória estatística da Província do Ceará sob a sua relação física, política e industrial. Fortaleza: Tip. Brasileira, 1858.
(4) Adotamos neste trabalho as atuais macrorregiões do Estado do Ceará.
(5) BEZERRA, Antônio. Notas de viagem. Fortaleza: Imprensa Universitária do Ceará, 1965.
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Cláudio Ferreira Lima – Economista, ex-secretário de Planejamento do Ceará e atualmente coordenador-geral de Planejamento do DNOCS.
Um comentário:
Li "Notas de Viagem", em especial e com mais atenção o trecho que se refere a Viçosa, porque sou viçosense. Confesso que fiquei extasiada com a leitura. Antonio Bezerra de Menenezes, além de historiador, naturalista, intelectual e, outra coisas mais ele é um grande poeta, deixando transparecer uma imensa sensibilidade em observar a beleza da natureza e o comportamento humano. Tereza Cristina Mapurunga Miranda Magalhães- Professora em Viçosa do Ceará
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